‘O servidor também é prisioneiro’, diz Sindspen

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É antiga, mas ainda atual, a discussão sobre conceder dignidade aos detentos do sistema penitenciário brasileiro. Em busca de vingança – e não de justiça – boa parte da sociedade defende a máxima de que “bandido bom é bandido morto”, ou, quando não, que eles não devem ter acesso a boas condições no cumprimento de suas penas. O que passa despercebido pelos defensores da “justiça com as próprias mãos” é que, quando o reeducando não tem dignidade, os servidores do sistema penitenciário acabam sendo atingidos por essa situação.

Para garantir a prestação desse importante serviço penitenciário, os agentes acabam pagando um preço alto, como estarem sujeitos a insalubridade, estresse e problemas psicológicos.

Para a presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários de Mato Grosso (Sindspen), Jacira Maria da Costa Silva, esses servidores estão sempre sujeitos às mesmas condições que os detentos. Ela chega a dizer que os profissionais – antigos agentes penitenciários, agora policiais penais – também são prisioneiros.

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Jacira Maria

“Não tem como falar de sistema penitenciário pensando que prisioneiro é só aquele que está privado da sua liberdade, porque o servidor que trabalha em regime de plantão ou até mesmo em regime de expediente, estando lá praticamente todos os dias, não deixa de ser um prisioneiro, porque também está submetido às mesmas condições”, afirmou à reportagem.

Em um bate-papo descontraído, ela relembra o início de sua carreira como agente penitenciária, lá pelos anos de 2004. Sua carreira começou na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, situada em Cuiabá. Lá, as condições já eram melhores que a situação dos presídios masculinos.

Jacira conta que conheceu verdadeiramente o sistema quando foi transferida para a Penitenciária Central do Estado (PCE), antigo “Pascoal Ramos”. Foi ali que ela viu como os detentos eram tratados sem dignidade e também foi ali que a ela foram impostas as mesmas condições insalubres às quais os reeducandos estavam sujeitos.

“As condições de vida eram completamente desumanas. O presídio totalmente abandonado e sem recursos. E nós servidores que ali estávamos padecíamos juntos, ao ver a situação que eles viviam. Praticamente era uma promiscuidade que havia lá dentro entre eles, até pelas condições desumanas nas quais eles viviam. Era esgoto passando pela frente da cela onde eles ficavam”, relembra, ressaltando que, quando os agentes realizavam o trancamento das celas, acabavam por pisar no esgoto que corria no local.

De acordo com ela, os agentes não se viam livres dessas condições quando iam embora. Devido às condições da unidade, todo o ambiente fedia e esse mau cheiro acabava por se infiltrar em suas peles. Jacira tenta descrever o fedor como “metálico” ou “ferrugem”. Esse cheiro, relembra, permanecia na pele mesmo depois do banho, por dias.

Hoje, afirma, a realidade já é diferente, depois que a unidade passou por reformas e adequações.

Saúde mental dos agentes em risco

Toda a responsabilidade do serviço prestado e os riscos aos quais estão sujeitos acabam por se tornar um risco à saúde mental dos agentes penitenciários.

De acordo com a presidente do sindicato, dos 3.107 servidores do sistema penitenciário de Mato Grosso, 480 estão licenciados. A maior parte, devido a problemas de saúde causados pelo acúmulo de estresse gerado pelo exercício da função.

“Suicídio nós não temos muitos. Agora, quanto a problemas psicológicos que levam à depressão e acabam sendo gatilhos pra outras doenças (…) nós temos 480 agentes e muitos deles estão afastados por depressão e problemas psicológicos”, afirmou, complementando que alguns servidores acabam morrendo por outras doenças, mas cujo surgimento se deu por estresse.

À nossa equipe, Jacira critica a forma como o governo atende seus servidores quando estes apresentam algum problema psicológico. Segundo ela, o governo não se preocupa em fornecer um tratamento psicológico continuado ao servidor quando este entra de licença por estresse.

“É aí que entra a falta de comprometimento da Administração Pública com o servidor: ele é afastado e fica em casa, não tem um acompanhamento da assistente social pra saber se ele está indo a alguma sessão terapêutica ou alguma sessão psicológica, porque não adianta só o psiquiatra passar um remédio, se ele está com depressão, tem que ser assistido”, afirmou.

A presidente do sindicato também lamenta que seja comum que os próprios servidores tenham resistência em procurar ajuda psicológica.

HUMANIDADE

Convivendo diariamente com os detentos, Jacira explica que os servidores acabam se aproximando deles. Não se trata de fazer amizade, mas um tratamento humanizado, que não os condiciona à intimidade com essas pessoas privadas de liberdade.

“Humanidade não é você se fechar, ouvir alguém falando com você e não responder. [Os agentes] têm que ter certa firmeza, certa conduta dentro da unidade, mas tudo com responsabilidade. Conversar não quer dizer que vai fazer algo ilícito e, às vezes, você conversar é mais ouvir porque a pessoa quer mais falar pra ela mesma se ouvir, do que você ficar dando “pitaco” na vida de alguém que você não conhece”, explica.

Esse tratamento deve ser humano, explica, mas sem dar intimidade aos detentos porque muitos se aproveitam da situação para ganhar a confiança dos servidores e pedir favores ilícitos.

SOB CONSTANTE AMEAÇA

Jacira, presidente do Sindspen, confirmou à nossa equipe que é corriqueiro o caso de agentes ameaçados por criminosos. Isso acontece devido ao crescimento das organizações criminosas. Em sua avaliação, há uma defasagem entre o crescimento desses grupos e o preparo dos Estados para combatê-los.

Em suas falas, ela lamenta o ingresso de tantos jovens na criminalidade. “[Os] criminosos que hoje estão entrando são meninos de 18 a 20 anos. São jovens que deveriam estar na escola, se preparando para o futuro ou preocupados com o amanhã. A gente vê jovens preocupados só com o hoje porque foram cooptados pela marginalidade, pelo crime organizado. (…) parece que o abandono dos jovens, das crianças e dos adolescentes está muito grande nas famílias”, avaliou.

A presidente cita o abandono da família, mas complementa dizendo que estas coisas só têm acontecido devido ao atual modelo implantado na sociedade, em que os pais precisam “se matar” de trabalhar para dar sustento aos filhos, muitas vezes sem ter com quem deixá-los, comprometendo sua formação como cidadãos.

Ricos investiam pensando no amanhã

Parece estória de pescador, mas a agente penitenciária Jacira Maria da Costa, atual presidente do Sindspen, garante que não. Na década passada, conta, quando o Centro de Custódia da Capital (CCC) ainda era um anexo da PCE e não tinha muitos recursos, uma “mão amiga” sempre surgia: a dos ricos.

De acordo com Jacira, era comum essas pessoas fazerem doações. O motivo para isso, segundo ela, era muito simples: sabendo que hora ou outra seriam alvos de prisão preventiva, os ricos investiam na manutenção para que, quando a prisão acontecesse, tivessem acesso a um pouco mais de conforto.

“Lá era uma unidade que não tinha grande recurso, mas como as pessoas eram abastadas, então elas ajudavam muito na manutenção. (…) Investindo na unidade pra ter um pouco mais de conforto, e como o regime não era de prisão, então até algumas regalias eram liberadas”, relembrou.

A unidade, até hoje, abriga pessoas com diploma de Ensino Superior e alvos de operações policiais, por exemplo.